terça-feira, 27 de agosto de 2013

mexidão #27

uma das minhas obsessões desse ano foi o documentário the act of killing, de joshua oppenheimer. achei duas versões nos torrents da vida - a mais recente com cerca de meia hora a mais -, vi e revi inúmeras vezes, absolutamente assombrado com a história e com o corajoso formato do filme (não foi a toa que dois grandes cineastas, errol morris e werner herzog, entraram como produtores executivos do filme). nesse texto que fiz pro yahoo toquei em algumas das muitas discussões levantadas pelo filme, mas tem mais, muito mais...


O MAL, ESSE BANAL

Impressionante como as pessoas não percebem o tanto de maldade que carregam por aí. Recentemente, o assassinato de MC Daleste durante uma apresentação em Campinas gerou uma enormidade de comentários do tipo “tem que morrer mesmo!” (por ser funkeiro ou por ter feito proibidões no passado ou por ser da periferia, ou por tudo). Claro que nem todos que falaram coisas assim na internet são assassinos em potencial, mas só o fato de darem tão pouca importância para uma vida, qualquer vida, é um sinal alarmante de que a coisa não anda nada bem. Porque a história é a seguinte: se você acha que outra pessoa deve morrer é porque você não a considera igual. É menor, não é gente como você, não é nem gente.

Lembrei-me dessas reações à morte de Daleste ao assistir, entre calafrios e assombros, o documentário The Act of Killing (2012). Em cartaz nos Estados Unidos, Holanda, França e Reino Unido (e espero que saia pelo menos em DVD ou VOD aqui; caso contrário só nos torrents), o extraordinário longa de Joshua Oppenheimer é uma porrada na cara e logo de início dá a letra de sua proposta perturbadora.

“Em 1965, o governo da Indonésia foi deposto por militares. Qualquer um que se opusesse à ditadura militar poderia ser acusado de ser comunista: sindicalistas, agricultores sem terra, intelectuais e chineses. Em menos de um ano, e com a ajuda direta de governos ocidentais, mais de 1 milhão de ‘comunistas’ foram mortos. O exército usou grupos paramilitares e gangsters para darem conta da matança. Estes homens estão no poder e perseguem seus oponentes desde então. Quando nos encontramos com os assassinos eles contaram, com orgulho, histórias sobre o que fizeram. Para entender o porquê pedimos a eles que criassem cenas sobre os assassinatos do jeito que bem entendessem. Este filme segue este processo e documenta suas consequências”.


Os assassinos de 1965 estão hoje com pouco mais ou menos de 60 anos. Todos pais, avôs, religiosos, geralmente fanfarrões, ocasionalmente carinhosos e absolutamente normais como Anwar Congo, o personagem central do filme. Durante as pouco mais de duas horas de The Act of Killing, Anwar e outros colegas e amigos fantasiam o passado sangrento de seu país a partir de clichês do cinema hollywoodiano, de musicais a faroestes, de filmes de guerra a policiais (na verdade, mantém a versão oficial da luta dos justiceiros do bem em nome da ordem militar contra os comunistas maus). Ao mesmo tempo, nos bastidores e em conversas entre si, são confrontados com a própria crueldade e violência que protagonizaram naquele tempo (alguns mataram centenas com as próprias mãos).

“Se conseguirmos fazer esse filme [com realismo] o que vai acontecer é que vamos acabar mostrando que na verdade nós é que fomos os cruéis e não os comunistas. (...) É uma questão de imagem”, diz Adi Zulkadry, outro personagem importante do filme e o mais brutalmente consciente dos crimes do passado (“Matar é algo rápido. Depois é só se livrar dos corpos e voltar pra casa”). Fala que não se sente culpado porque “crimes de guerra” são definidos pelos vencedores e ele é um vencedor, portanto ele pode criar a definição que achar melhor. 

 Assassinos e atores: Adi Zulkadry e Anwar Congo sendo maquiados

Anwar Congo não consegue mais manter a frieza de outrora e com o decorrer das filmagens vai se abalando com a lembrança de tanto sangue nas mãos. Confessa que tem pesadelos recorrentes e teme os espíritos dos mortos e os olhares de suas vítimas. Diz que teve que matar, que foi sua consciência que o mandou, e não consegue explicar mais nada. Engasga, quase vomita.

“Acho que ao se identificar com Anwar, o espectador é forçado a ser confrontar com o fato de que estamos mais próximos de ser assassinos do que gostamos de acreditar”, disse o diretor Joshua Oppenheimer em entrevista ao site Inside Indonesia.

Anwar Congo, Adi Zulkadry e outros personagens de The Act of Killing mataram milhares na Indonésia por razões distintas. Uns foram em busca de poder financeiro e/ou político, uns por puro sadismo, e outros obedecendo a ordens superiores (seguindo a teoria da “banalidade do mal” de Hannah Arendt), para ficarmos apenas em alguns exemplos. Mas todos consideravam que os assassinados não eram gente o bastante para viver. Não eram nem gente. Eram exatamente o contrário deles, pessoas normais.


Epílogo jornalístico

Em determinado momento do documentário surge a figura de Ibrahim Sinik, editor do maior jornal do norte de Sumatra (a maior ilha da Indonésia) e amigo de políticos poderosos de ontem e hoje. Sobre seu papel como imprensa nos sangrentos eventos de 1965 e 1966 diz que coletava informações e comandava interrogatórios. “Independente de qualquer pergunta que fizéssemos, a gente mudava as respostas pra fazer com que eles parecessem maus. Como jornalista meu trabalho era fazer com que as pessoas odiassem eles [comunistas]”, relembra e logo completa, sem disfarçar certo orgulho, que bastava uma piscadela sua para que o interrogado da vez fosse levado para o matadouro de Anwar Congo & Cia.

Moral dessa história? Toda imprensa que está aliada ao poder (situação, oposição ou iniciativa privada) e não aos seus leitores se comporta da mesma forma.



p.s.: Para quem lê em inglês vale muito a pena encarar “The Murders of Gonzago - How did we forget the mass killings in Indonesia? And what might they have taught us about Vietnam?”, texto de Errol Morris, diretor do oscarizado Sob a Névoa da Guerra (2003) e um dos produtores executivos de The Act of Killing. Mais um destaque para a ótima entrevista em vídeo da Vice com Morris e outro entusiasmado produtor executivo do documentário, o cineasta Werner Herzog, de O Homem Urso (2005).

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