sexta-feira, 25 de outubro de 2013

lugar de arte é na rua

essa hora ia chegar, claro. sobre street art só tinha feito um perfil (osgêmeos, 2006) e tratado do assunto numa coluna do yahoo ("arte que desmancha no ar", 2012). então veio o convite da audi magazine para o terceiro frila pra revista e a ideia era falar de quatro cidades que são referências na street art mundial: nova york, são paulo, londres e berlim. e falar com algumas pessoas. e fazer um painel histórico. acho que ficou divertido. agradecimentos a décio galina (que me passou mais uma ótima pauta) e edmundo clairefont (que editou o texto na revista), e também a alex senna, ignacio aronovich e william baglione pelas aspas alcançadas. aqui, como sempre, vai o texto que mandei, sem revisões e edições (daqui pra lá, a única grande diferença está na parte de nova york, que edmundo editou muito bem e ficou mais completo).


QUATRO CAPITAIS DA ARTE DE RUA NO MUNDO

O que é preciso para uma cidade se tornar referência na street art? Saiba um pouco das histórias de Nova York, São Paulo, Londres e Berlim, e alguns de seus personagens

Banksy e Osgêmeos em Nova York

NOVA YORK

No princípio era Nova York, cidade que deu régua, compasso e muitos motivos para que, nos anos 1970, a arte de rua surgisse como uma colorida expressão de revolta contra a degradação urbana e a falta de perspectivas. Um dos pilares do igualmente nascente movimento hip hop, o grafite apareceu primeiro em pichações nos muros, metrôs e trens. Eram jovens como Tracy 168 e Kase 2 afirmando seus próprios nomes em versões estilizadas (tags) diante de uma cidade que não lhes dava a mínima e também sobre rivais de outros bairros e turmas.

Na virada para a década de 1980, a pichação foi se sofisticando a partir do trabalho de artistas como Lee Quiñones, Dondi e Fab 5Freddy. Difundidos por eles, novos tipos de letras (“wild style”) e usos de sprays variados fizeram com que o grafite cruzasse fronteiras e começasse a influenciar artistas que não vieram das ruas, tais como Jean-Michel Basquiat e KeithHaring. Apadrinhados pelo papa da pop art Andy Warhol, Basquiat e Haring foram então os pioneiros a entrarem no circuito das galerias de arte, mas suas mortes precoces, em 1988 e 1990 respectivamente, interromperam um ciclo de reconhecimento que estava apenas começando (e que só voltaria, dessa vez com força total, em Londres nos anos 2000).

A partir dos anos 1990, novas técnicas (adesivos, lambe-lambes e estêncil) se uniram aos incontornáveis sprays atraindo novas gerações para as ruas. “Por sua importância histórica para a arte urbana, Nova York continua recebendo grafiteiros do mundo inteiro e apesar da repressão existe uma cena muito forte com lugares que viraram pontos turísticos”, explica Ignacio Aronovich, fotógrafo, jornalista e criador do site Lost Art. Um dos pontos turísticos mais célebres é o Five Pointz, localizado em Long Island, e que está sendo ameaçado de demolição pela voraz especulação imobiliária. Outras áreas procuradas estão no SoHo, Chelsea, Harlem e Brooklyn.

Nos anos 2000, os artistas de rua nascidos ou baseados em Nova York viram a cena ser incorporada pelo mainstream e o que era considerado vandalismo em outros tempos passou a ilustrar capas de discos, posters de filmes de Hollywood, roupas e até campanhas presidenciais (“Hope”, arte feita por Shepard Fairey, que ficou conhecido por seu “Obey”, foi usada pela campanha de Barack Obama em 2008). As ruas continuam sendo o palco ideal para artistas falarem, das formas mais diversas, sobre o mundo de hoje, e o complexo tabuleiro de Nova York ainda é uma de suas melhores traduções.

Rui Amaral em São Paulo

SÃO PAULO

Cidade feia, cinza, degradada. A gigantesca São Paulo pode ser tudo isso à primeira vista, mas basta dar um pouco de atenção a suas quebradas para ver que é exatamente essa sujeira, essa exclusão do humano nos espaços públicos, que a torna uma das mais instigantes galerias de arte de rua do mundo. Essa história não é de hoje, e vem lá desde os anos 1980 com o surgimento de artistas como Osgêmeos, Speto, Vitché, Rui Amaral e Binho, todos com algum tipo de ligação com a pichação e as cenas de rap e skate da cidade. Em comum, muitas cores e figuras humanas estilizadas.

Na década seguinte veio mais uma leva, dessa vez capitaneada por figuras como Herbert Baglione, Onesto, Zezão, Nunca e Stephan “Calma” Doitschinoff. Foi o tempo de novas experimentações que iam do expressionismo de Baglione ao abstracionismo azulado de Zezão. Também é dessa época Eduardo Kobra que, com o passar do tempo, tornou-se um dos muralistas mais pops da cidade.

A evolução de estilos e a variedade de propostas deram mais um salto nos anos 2000 com a proliferação da internet e a possibilidade de compartilhar rapidamente os registros das intervenções (é sempre bom lembrar que uma das essências da arte de rua é seu curto tempo de vida). Então se juntaram ao grupo jovens artistas como Crânio, Magrela, Treco, Chivitz, Flip e Alex Senna, com estilos bem diferentes e discursos muito pessoais sobre a cidade. Destoando um pouco, mas da mesma geração, Alexandre Orion passou a criar obras que são fotografias de seus grafites e estêncils se relacionando com as pessoas da cidade. Tudo muito novo e cheio de possibilidades.

O paulistano Senna, por exemplo, começou a desenhar nas ruas apenas em 2006, mas já possui um invejável currículo tanto no Brasil quanto no mundo. “Andar na rua é como estar em uma grande galeria”, diz Senna. Só que o artista que assinou trabalhos para grandes marcas como Nike e Hermés vê uma particularidade nas ruas paulistanas. “Talvez as pessoas não saibam, mas São Paulo é com certeza a meca do grafite. A liberdade, os estilos diferentes e a criatividade que existe aqui não tem em lugar nenhum. São Paulo é cheia de pichações e grafite, a cidade é inteira rabiscada, o que de certa forma mostra o quanto as pessoas sentem a necessidade de se expressar”.

No entanto, William Baglione – criador da Society Under Construction (SUC), produtora que toca trabalhos comerciais e curadorias independentes com artistas de rua brasileiros – faz uma ressalva sobre a cidade. “Temos grandes artistas, com excelente técnica e conteúdo, e temos também muito muro pra pintar. Mas não temos um mercado maduro dessa nova arte contemporânea porque ainda existe preconceito por parte das instituições públicas e privadas”. Sem esse mercado consolidado, os artistas locais aproveitam a cidade como portfolio para emplacarem trabalhos remunerados nos Estados Unidos e Europa. Mas só mesmo em São Paulo existe o Beco do Batman, o Museu Aberto de Arte Urbana e a Bienal do Grafite (que agora, no início do ano, teve sua segunda edição). É que cabe muita cor nessa cidade.

Crânio e Alex Senna em Londres

LONDRES

A ligação íntima e explosiva entre o hip hop, o grafite e uma juventude periférica sem perspectivas que deu origem a arte de rua em Nova York no final dos anos 1970 chegou a Londres no início dos anos 1980. Também como em Nova York (e São Paulo), a cena londrina começou com pichações em muros, metrôs e trens. Só que a repressão do Estado de Sua Majestade foi tão forte no final da década de 1980 que acabou atrasando o crescente movimento da arte de rua inglesa e jogou artistas como Robbo e Mode 2 em um limbo por anos.

Outra cidade muito importante na cena foi, e ainda é, Bristol, terra natal do célebre Banksy, que se mudou para Londres durante os anos 1990. Foi na capital que ele deixou de lado o grafite e as pichações, e passou a se aperfeiçoar na técnica do estêncil porque era mais rápido de fazer e podia ser reproduzido facilmente em outros lugares. O calculado anonimato de Banksy acabou lhe trazendo ainda um grande número de fãs que passaram a acompanhá-lo, registrando e compartilhando febrilmente na internet suas ações pela cidade (e, logo depois, pelo mundo). O sucesso de suas ações guerrilheiras e da crítica sócio-política de sua arte de rua (ácida e pop ao mesmo tempo) começou a chamar atenção no início dos anos 2000 e durante o correr da década mudou para sempre o mundo da arte de rua em Londres e no mundo. O negócio ficou tão sério que paredes com seus grafites passaram a ser retiradas de seu lugar de origem para serem vendidas em leilões ou no mercado negro.

Por causa de Banksy, Londres se tornou o centro mundial da arte de rua nesse início de século 21, com direito a grafiteiros do mundo todo sendo disputados por galerias, como foi o caso dos brasileiros Osgêmeos e Nunca e suas gigantescas intervenções no renomado Tate Modern em 2008.

O paulistano Alex Senna esteve recentemente na cidade e foi só elogios. “A cidade acolhe muito bem os artistas de rua, e as pessoas se esforçam muito e te ajudam pra que você pinte lá. Quando cheguei não tinha nenhum muro na manga e mesmo assim fiz umas 30 pinturas”. Porém, ah, porém, Senna também constatou que a cena londrina é um pouco confusa, e devido ao sucesso de Banksy, existem muitas pessoas envolvidas que não são artistas. “Londres tem gente de todo o mundo querendo pintar. No centro da cidade ou nos lugares mais populares, os trabalhos não duram muito. É diferente de São Paulo. Quando digo que a cena está um pouco confusa é porque pra mim street art é feita de amor, liberdade, atitude e respeito. Estão tirando a atitude e o respeito de lá, então se você quer que seu trabalho dure tem que ir pra fora do centro”.

Mesmo com tanta competitividade, ou talvez exatamente por isso, Londres é uma das poucas cidades do mundo que possui roteiros turísticos exclusivamente sobre arte de rua.

Thierry Noir em Berlim

BERLIM

Durante mais de quatro décadas, Berlim foi uma cidade dividida. De um lado, a parte ocidental, capitalista. Do outro, a oriental, socialista. E, a partir de 1961, um longo, alto e muito vigiado muro de concreto rachou a cidade literalmente no meio. A arte de rua berlinense começou no lado ocidental com muitos grafites e pichações que criticavam em várias línguas a própria existência de tão vergonhoso muro. Não era possível fazer o mesmo no lado oriental.

Mas com queda do muro em 1989, a arte de rua na cidade tomou novos rumos e jovens artistas alemães se mudaram de mala e cuia para o lado oriental da cidade, muito mais barato e um tanto degradado pela crise econômica que ajudou a derrubar o regime socialista. Então, de uma hora para a outra, Berlim se tornou um grande museu de arte a céu aberto, com destaque para o East Side Gallery, uma parte preservada do muro que se transformou em patrimônio da humanidade pelo colorido do francês radicado na cidade Thierry Noir.

No decorrer dos anos 1990 e 2000, uma grande variedade de artistas espalhou seus trabalhos pela cidade, apesar da costumeira repressão policial. Daí que apareceu um tanto de tudo: dos personagens simples e irônicos grafitados por Mein Lieber Prost até os estêncils críticos feitos por Alias e XOOOOX, passando pelos divertidos lambe-lambes de El Bocho, os icônicos Yellow Fists, as instalações do coletivo Bosso Fataka e o enigmático trabalho de um dos pioneiros da arte da urbana de Berlim, Tower.

As coisas melhoraram um pouco em 2005 quando Berlim foi declarada pela UNESCO como a “Cidade do Design”, fato que deu a artistas locais e visitantes um apoio maior contra a vandalização do poder público (como em quase todos os lugares do mundo, o Estado alemão prefere manter a cidade cinza). Surgiram assim grandes obras de artistas como Banksy e o italiano Blu que se tornaram parada obrigatória para um novo e crescente tipo de turismo, o da arte de rua.

“O muro foi um fator importante para a história artística da cidade, mas a explosão de arte urbana após a reunificação foi o que fez Berlim entrar na mira do mundo. Kreuzberg, por exemplo, é o meu bairro favorito para ver arte de rua”, explica o brasileiro Ignacio Aronovich, que participou de uma exposição coletiva na cidade, em 2003, ao lado de Banksy e dos norte-americanos Swoon e Shepard Fairey. Outros bairros famosos por suas artes de rua são Mitte, Prenzlauer Berg e Friedrichshain. Em comum a todos esses lugares e a todos os artistas que passam por Berlim, uma vontade de experimentar e olhar para o futuro.




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